A “falha de comunicação” de um árbitro que envergonhou o futebol
Há quatro dias que estou inconformado. O motivo tem nome e sobrenome: Janny Sikazwe.
Ele é o árbitro que apitou a final do Mundial de Clubes da Fifa, entre Real Madrid e Kashima Antlers, no domingo (18), em Yokohama, no Japão.
Todas as previsões apontavam para uma vitória fácil do time espanhol dirigido por Zinédine Zidane, afinal, é um esquadrão recheado de astros, a começar pelo português Cristiano Ronaldo, eleito dias antes o vencedor da Bola de Ouro de 2016. Para rodeá-lo, o croata Modric, o alemão Kroos, o brasileiro Marcelo, o espanhol Sergio Ramos e o francês Benzema, entre outros aclamados futebolistas, espanhóis ou de outras nacionalidades.
Do outro lado, 11 anônimos japoneses (para todos que não acompanham o futebol do Japão, ou seja, quase todo o mundo). Que, cheios de disposição e bem armados taticamente pelo treinador Masatada Ishii, propuseram-se a dar mais trabalho que o esperado.

Deram, e como. O Real saiu na frente, com Benzema, mas levou a virada (Shibasaki, duas vezes) e sofreu para empatar, em um pênalti em Lucas Vázquez que poderia ter sido evitado pela defesa japonesa (não havia risco claro de gol na jogada). Cristiano Ronaldo converteu.
O jogo ficou quente, e tanto Real como Kashima poderiam ter feito o terceiro gol.
Ele não saiu, e a partida se encaminhava para uma inesperada prorrogação, quando ocorreu o lance crucial: Sergio Ramos fez uma falta clamorosa no campo de ataque do Real em Mu Kanazaki, evitando contra-ataque que poderia ser perigoso do time anfitrião. Era lance para cartão amarelo, não há dúvida.
Entra em cena, então, ele: Janny Sikazwe. Da África, mais especificamente de Zâmbia, para o mundo.
Ele leva a mão ao bolso. Para, logicamente, dar o segundo cartão amarelo a Sergio Ramos, o capitão madridista, que por uma outra falta no mesmo Mu Kanazaki já havia recebido o primeiro.
Sergio Ramos se afastou do local da falta rapidamente, mas Sikazwe, sem tirar a mão do bolso, fez sinal para que ele voltasse. Seria expulso, e o Real iria para a prorrogação com dez jogadores. O que já estava difícil ficaria deveras complicado.
Só que não. Repentinamente, Sikazwe desistiu. Fiquei pasmo. O goleiro do Kashima, Sogahata, foi à loucura e contestou, sem sucesso, a (falta de) atitude do juiz.
Escrevi outro dia que não há injustiça no futebol, e sim merecimento, mas ao ver o que estava acontecendo comecei a repensar… Era incrivelmente inacreditável.
Pensei: há duas hipóteses. A primeira: Sikazwe recuou porque se deu conta de que Sergio Ramos já tinha o amarelo. A segunda: pelo ponto eletrônico, Sikazwe recebeu o aviso, de um dos auxiliares de campo ou do árbitro de vídeo (novidade da Fifa muito malsucedida no Mundial), que Sergio Ramos já tinha o amarelo. Sendo qualquer uma das opções, concluiu: “Opa, se eu der outro cartão, terei de expulsá-lo”. Percebeu que deixaria o todo-poderoso Real Madrid com chance significativa de ser derrotado, o que seria uma das maiores zebras da história do futebol.
Sergio Ramos não foi expulso, e na prorrogação o Real prevaleceu, com dois gols de Cristiano Ronaldo. Final: 4 a 2. Era o segundo título do clube na competição da Fifa.
Meu inconformismo me fez contactar a Fifa de imediato. A seguir, resumirei o texto enviado ao departamento de comunicação da entidade máxima do futebol.
“Peço esclarecimento sobre a atuação do árbitro Janny Sikazwe (Zâmbia) na final do Mundial de Clubes. (…) Aos 90 minutos, Sergio Ramos fez uma falta em Mu Kanazaki e levou a mão ao bolso para mostrar o cartão amarelo. Depois de alguns segundos, desistiu. (…) O segundo cartão amarelo significaria a expulsão de Sergio Ramos, o que deixaria o Real Madrid com dez jogadores na prorrogação. Na prorrogação, Sikazwe mostrou três cartões amarelos (Casemiro, Carvajal e Fabricio) por faltas praticamente idênticas à cometida por Sergio Ramos, o que mostra que, segundo seu critério, o árbitro deveria ter mostrado o amarelo (e consequentemente o vermelho) a Sergio Ramos. Claramente Janny Sikazwe favoreceu o Real Madrid e prejudicou o Kashima Antlers. Foi vergonhoso e lamentável.”
Depois, questionei se a Fifa analisaria a atuação de Sikazwe e se, eventualmente, haveria alguma punição a ele por esse erro grotesco. Também indaguei se o sistema de videoarbitragem, batizado de VAR, não poderia ter alertado o árbitro de que a falta era, sim, para cartão amarelo.
Passados três dias, obtive respostas lacônicas da Fifa.
Sobre o VAR: “Há um protocolo para o uso do VAR que não inclui o segundo cartão amarelo”. Explicando a “explicação”: o VAR deve ser utilizado apenas em situações duvidosas de gols, pênaltis e expulsões. Ora, esse era um caso que resultaria em uma expulsão! Ou seja, “o cara da TV”, que viu e reviu o lance, deveria ter sido assertivo: “Falta para cartão amarelo”. Não o fez.
Sobre a atuação de Sikazwe: “De maneira geral, a Fifa não comenta decisões isoladas do trio de arbitragem”. Deveria, ou passa a impressão de concordar com uma falha gravíssima. Além disso, o “de maneira geral” não cabe neste caso, que é bem específico.
O mundo viu e condenou o erro do árbitro zambiano, à exceção, por razões óbvias, dos torcedores do Real Madrid. Que, é bom deixar claro, não têm nada a ver com isso. Estão felizes e podem se vangloriar de ter ganhado três títulos neste ano (Mundial, Champions League e Supercopa da Europa), a mesma quantidade do arquirrival Barcelona (Espanhol, Copa do Rei e Supercopa da Espanha), porém todos com grife internacional.
O pior, contudo, estava por vir. A versão de Janny Sikazwe. Que, ao site esportivo FilGoal, do Egito, creditou a confusão a uma “falha de comunicação” entre ele e um dos bandeirinhas.
Segundo o árbitro, foi o assistente que o avisou que houve falta, uma desculpa esfarrapada e mentirosa, pois a TV mostra que Sikazwe apitou tão logo Sergio Ramos atingiu Mu Kanazaki.
Disse o zambiano: “Ele (banderinha) me disse que foi falta e afirmou pelo fone de ouvido que ‘não era’ para dar cartão, só que eu entendi que ‘era’ para dar cartão”.
Desfeito o mal-entendido, Sikazwe desistiu de advertir Sergio Ramos.
E nessa história acredite quem quiser.

Enfim, meu inconformismo em relação a esse episódio perdurará por muito tempo. E ele se estende à Fifa, que não pode fechar os olhos e fingir que nada aconteceu, que tudo está bem.
Espero que as respostas que recebi façam parte apenas de uma estratégia para não expor Sikazwe a mais críticas do que as já recebidas. E que nos bastidores a Fifa esteja tomando providências.
Pois ou o árbitro é medroso, tendo “pipocado” ao se deparar com a iminente situação de deixar o Real Madrid em desvantagem numérica (o que é um comportamento inaceitável), ou é ruim demais, pecando pela lambança comunicativa e pela falta de critério (o que é igualmente inaceitável).
Espero, e todos que levam o esporte a sério devem também esperar, não ouvir mais o nome de Janny Sikazwe em um campo de futebol.