Ícone na Copa-1994, Lalas chama jogadores da seleção dos EUA de ‘milionários molengas’
Em 1990, depois de um hiato de 40 anos, os Estados Unidos voltaram a disputar uma Copa do Mundo.
Na Itália, perderam seus três jogos, caindo na fase de grupos, algo absolutamente normal para um país em que um dos esportes nacionais é o futebol americano, jogado primordialmente com as mãos.
Quatro anos depois, os EUA, dentro de seu projeto para popularizar internamente o esporte mais popular do planeta, abrigariam pela primeira vez uma edição do Mundial de “soccer”.
Então com 21 anos, cursando a faculdade de jornalismo, eu imaginava o desafio esportivo que teria a seleção anfitriã.
Jamais um país-sede caíra na primeira fase de uma Copa do Mundo, e era mais que possível que isso viesse a acontecer com os americanos, vistos como azarões em um grupo com a Colômbia como favorita e as europeias Suíça e Romênia.
Ao olhar para os jogadores dos EUA, o que mais me chamou a atenção foi o visual de três deles, que os iconizaram naquele time: o simpático goleiro e capitão Tony Meola, com seu cabelo preso em um rabo de cavalo miniatura, e os zagueiros mal-encarados Marcelo Balboa, com cabelo mullet e um bigode à la Zenon (jogador do Corinthians nos anos 1980), e Alexi Lalas, um ruivo com cabelão, bigodão e imponente cavanhaque.
Pareciam pistoleiros do Velho Oeste (os “maus”, não os “bons”) ou artistas de circo (mais para palhaços que para malabaristas ou trapezistas), não jogadores de futebol. “Vão tomar pau de todos, de novo”, sentenciei comigo.
Enganei-me, e por muito.
Os EUA, com técnica limitada porém muita disposição e suor, empataram com a Suíça (1 a 1), derrotaram a Colômbia (2 a 1) e perderam de pouco para a Romênia (1 a 0). O suficiente para avançar ao mata-mata com uma das vagas oferecidas aos quatro melhores terceiros colocados dos seis grupos.
A eliminação aconteceu somente diante do Brasil, que depois se tornaria tetracampeão mundial, em um jogo de oitavas de final muito mais difícil que o esperado, disputado no Dia da Independência dos EUA (4 de julho), o que encheu ainda mais de brio e valentia os americanos.
A vitória dos comandados de Carlos Alberto Parreira e capitaneados por Dunga veio, mas só no segundo tempo e com um magérrimo 1 a 0.
Lembro-me bem do lance do gol. Romário conduziu a bola pelo meio e, antes que Balboa pudesse combatê-lo, deu passe açucarado para Bebeto, que tocou com classe para superar Meola.
Naquele lance, contudo, por muito pouco o Brasil não marcou, já que Lalas atirou-se em um carrinho e ficou a centímetros de travar o chute de Bebeto.
Em casa, os EUA se superaram, marcaram posição e mostraram ao mundo que podiam também jogar, dentro de seus limites, com os pés. Tanto que não mais deixaram de ir a uma Copa.
O que pode estar em via de acontecer desta vez.
Faltando dois jogos para o encerramento das eliminatórias da Concacaf (Américas do Norte e Central e Caribe) para o Mundial da Rússia, os EUA ocupam a quarta posição entre seis países, com 9 pontos (duas vitórias, três empates, três derrotas).
Os três primeiros se classificam automaticamente – o México já se garantiu e a Costa Rica, com 15 pontos, está quase lá. O quarto colocado terá chance em uma repescagem, contra um representante da confederação da Ásia (Austrália ou Síria).
Os EUA, com 9 pontos, lutam diretamente com Panamá (10) e Honduras (9).
Na última rodada dupla das eliminatórias, no início deste mês, os americanos perderam da Costa Rica (2 a 0), como mandantes, e empataram com Honduras (1 a 1), como visitantes, o que complicou a situação que até então parecia controlada.
O mau desempenho despertou a revolta de quem? Lalas.
Aos 47 anos, o ex-beque de cintura dura e raça exacerbada, atualmente comentarista na Fox Sports, soltou o verbo contra os compatriotas que vestem hoje a camisa da seleção.
“Caras, o que vocês pretendem? Continuar sendo um punhado de milionários molengas e tatuados, com atuações abaixo da crítica? Vocês são uma geração a quem tudo foi dado, e estão à beira de desperdiçar tudo”, esbravejou Lalas. “É hora de nos dar de volta tudo o que lhes demos. Vocês nos devem isso. Nos façam acreditar.”
Lalas, inclusive, citou nominalmente jogadores que estariam aquém do desejado.
“Michael Bradley. Os EUA não precisam que você seja zen, os EUA precisam que você jogue melhor. Clint Dempsey. Você é uma lenda nacional. Agora precisamos que você seja um líder da seleção nacional. Jozy Altidore. Você é mesmo tão bom como falam? Pois não está sendo bom o bastante. Os caras que não citei é porque não merecem menção. E isso inclui você, Menino Maravilha.”
Lalas chamou de “Menino Maravilha” o atacante Christian Pulisic, de 18 anos, que defende o Borussia Dortmund (Alemanha) e é tido como a maior revelação americana dos últimos tempos.
Pulisic respondeu laconicamente. “Não perderei meu sono pelo que Lalas disse sobre nós”, disse à NBC.
Altidore também se pronunciou, em uma frase, via Twitter: “Eu nem mesmo tenho tatuagens”.
Bradley, o capitão do time, foi mais diplomático (ou zen, como Lalas o qualifica).
“Sendo um atleta, você tem que compreender que todo mundo tem uma opinião, especialmente nos dias de hoje. Faz parte da vida. Se isso derruba você, você está na profissão errada. É necessário usar (a crítica) do melhor jeito: como motivação”, afirmou à Sportsnet.
Esperto, Lalas sairá vencedor dessa troca de farpas independentemente da classificação para a Copa.
Caso os EUA carimbem o passaporte para a Rússia, ele dirá que seu discurso influenciou positivamente o comportamento do Menino Maravilha e companhia.
Caso contrário, essa seleção americana será eternamente marcada pelas palavras dele: aquela que tinha jogadores “milionários, tatuados e molengas”.
O destino dos Estados Unidos será conhecido em outubro, nas partidas do dia 6, diante do Panamá, e do dia 9, contra Trinidad e Tobago.