A goleira e o gandula

O gandula é um personagem que faz parte do futebol desde 1939.

Ele surgiu, conforme relatos históricos, em decorrência das ações de um jogador do Vasco da Gama, Bernardo Gandulla.

Argentino, ele foi contratado no fim dos anos 1930 pelo clube carioca. Sem obter espaço no time, decidiu ser útil de outra forma, buscando a bola quando essa saía do campo durante as partidas.

“A atitude de Gandulla ganhou o carinho da torcida e após seu retorno para a Argentina, em 1940, seu nome virou referência para os apanhadores de bola”, afirma texto da Universidade do Futebol publicado em 2007.

Com o decorrer dos anos, a figura do gandula tornou-se inerente aos jogos.

Normalmente, o time mandante se responsabilizava por disponibilizar meia dúzia deles (um atrás de cada gol, dois em um lado do gramado, dois do outro lado), para resgatar a redonda quando ela fosse chutada para longe.

Pouco se reparava na atuação deles, a não ser quando um, em corrida desenfreada, tropeçava ou, afobado, deixava a bola escapar na tentativa de pegá-la ou de levá-la de volta ao campo.

Ou, também, quando todos desapareciam do recinto futebolístico, sempre perto do fim da partida, sempre quando a equipe da casa estava vencendo. Uma clara forma de ganhar tempo, a fim de reduzir as chances do time visitante.

Quando eu frequentava os estádios, havia gandulas crianças –com idades variadas–, mas também marmanjos, que ou já eram contratados do clube, fazendo um “extra” na função, ou eram contratados pelo clube especificamente para executar a tarefa.

Em um ou dois anos, a Federação Paulista de Futebol utilizou gandulas mulheres –a informação que a rádio dava era que eram estudantes universitárias–, o que agradava à torcida, predominantemente hétero e masculina.

Mas a moda não pegou, pelo menos não de modo consistente.

Cinco dias atrás, na Inglaterra, ocorreu um fato inusitado no Campeonato Inglês feminino, no confronto Manchester City x Aston Villa, envolvendo um gandula. E uma goleira.

O primeiro tempo se aproximava do fim no Academy Stadium, em Manchester, sem abertura de contagem, quando, após ataque do City, a bola saiu pela linha de fundo.

A goleira do Villa, Hannah Hampton, de 21 anos, caminhou até a área que fica atrás de seu gol e viu que um gandula mirim estava com ela nas mãos, atrás das placas de publicidade.

Hampton esperou que o garoto, que aparentava ter uns 10 anos, lhe devolvesse a bola. Porém isso não aconteceu.

Desconcertada, a guarda-metas se aproximou, fez o gesto de “vamos, me dê”. Nada. O menino a observava, relutante.

Gandula mirim recusa-se a dar a bola para Hannah Hampton no fim do primeiro tempo de Manchester City x Aston Villa (Reprodução/YouTube)

A demora começou a impacientar a camisa 1, que, inconformada, olhava ao seu redor, braços abertos, como a dizer: “Olhem, ele não devolve a bola. Que petulância!”.

Sem ninguém para socorrê-la, Hampton chegou mais perto e verbalizou sua insatisfação.

O gandula desviava o olhar e procurava alguém, como se esperasse uma confirmação de que agia corretamente, e não para ser provocativo.

Foi vencido, entretanto, pela insistência de Hampton e acabou, a contragosto, entregando a bola à goleira, que enfim pôde reiniciar a partida.

Nas redes sociais, internautas brincaram com a cena e chegaram a afirmar que o rapazinho, que vestia um casaco com o escudo do City, tinha sido orientado a fazer cera.

Sim, gandulas têm a capacidade de, com certas artimanhas, atrasar a reposição da bola. Só que evidentemente esse não seria o caso, já que o placar marcava 0 a 0 e ainda havia todo o segundo tempo a ser disputado.

Quem esclareceu o ocorrido foi Jacqui Oatley, comentarista da Sky Sports, que afirmou que o menino tentou cumprir orientação que lhe fora passada.

Devido a um estranho protocolo a ser seguido por causa da pandemia de coronavírus, quem deveria fornecer a bola de volta ao jogo era o quarto árbitro, e não o gandula.

Se essa for mesmo a razão, e se essa determinação estiver sendo seguida desde o início do campeonato, em setembro, a errada é Hampton, que deve sofrer de amnésia.

A goleira, aliás, teria desejado que o gandula tivesse desaparecido com a bola que ela tanto insistiu em ter, e com todas as outras disponíveis, se soubesse o que a segunda etapa lhe reservaria.

O City massacrou o Villa, fazendo Hampton, que é uma das goleiras da seleção inglesa, buscar a bola nas redes nada menos que cinco vezes.

A goleada por 5 a 0 deixou as duas equipes com 10 pontos em oito partidas, mas ambas estão bem distantes do topo da tabela, ocupado pelo Arsenal (22 pontos).

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