O futebol não aceita mais a homofobia, nem em tom de piada
Um vídeo protagonizado pelo treinador Ricardo “Tuca” Ferretti instiga a curiosidade e a análise.
Na entrevista coletiva, depois de derrota do Juaréz, o clube que dirige há cinco meses, para o Tigres, clube que dirigiu por 16 anos (não consecutivos) e no qual é ídolo, Ferretti interrompeu o jornalista que faria a primeira pergunta.
“Há velhas? Maricas? O primeiro? Quem vai ser o primeiro maricas?”, questionou, com bom humor, mesmo seu time tendo levado uma sova de 3 a 0.
Sem que ninguém se manifestasse, concluiu, sorrindo, muito à vontade na sala de imprensa do Estádio Universitário, em San Nicolás de los Garza: “Puros machos, então?”.
Em desuso, “maricas” tem como sinônimos “gay” e “afeminado”, entre outros substantivos e adjetivos pejorativos.
O insólito ao ver a cena é a reação da plateia, certamente formada em sua maioria por homens heterossexuais. Ouviam-se risadas durante a fala de Ferretti, que é brasileiro (nasceu no Rio de Janeiro) e tem cidadania mexicana.
Y luego pretendemos erradicar gritos homofóbicos de nuestros estadios… ¡Lamentable! pic.twitter.com/kNnMidzSlu
— Marc Crosas (@marccrosas) November 8, 2021
Na minha interpretação, Ferretti, que está com 67 anos e vive no México há quase 45 anos, treinando equipes locais desde 1991, quis que mulheres (as mais velhas) e homossexuais tivessem prioridade nas perguntas.
Parecia ser uma brincadeira, uma piada. Só que há brincadeiras e piadas.
Atualmente, em um mundo que busca a igualdade entre os seres humanos –e é difícil conceber que há gente que não pensa assim, que se acha melhor ou superior aos outros, devido ao sexo, ao gênero, à raça, à condição financeira etc.–, esse tipo de brincadeira/piada não é tolerável.
Além de não politicamente correta, a atitude de Ferretti foi considerada homofóbica. No México, e em se tratando de futebol, isso é gravíssimo.
A seleção do país e também seus clubes têm recebido seguidas punições, seja no âmbito dos campeonatos nacionais, seja em competições internacionais, porque torcedores têm o hábito –que insistem em manter– de gritar “puto” quando o goleiro rival bate o tiro de meta.
Essa palavra, em uma das traduções, quer dizer “bicha”.
Trata-se de uma provocação ao adversário, tem o objetivo de tentar desconcentrá-lo e irritá-lo, porém o meio para isso é um termo discriminatório. Uma afronta aos homossexuais.
É possível interpretar que Ferretti quis ser extravagante (no sentido de surpreendente), porém o resultado foi a inconveniência.
Mais que isso, é perfeitamente possível inferir que o treinador tem aversão, mesmo que não confessa, a homossexuais, ou não teria dito o que disse.
Algo assim: se você é afeminado, pergunte antes, pois é como se você fosse mulher, e reza o cavalheirismo que “primeiro as damas”. No caso em questão, homofobia escancarada.
A atitude de Ferretti repercutiu muito mal –na mídia, nas redes sociais, na Federação Mexicana de Futebol–, e ele acabou punido com três jogos de suspensão mais multa pelos dirigentes da entidade.
Como o Juárez já encerrou sua participação no Torneio Apertura, ficando em 16º lugar entre 18 participantes, o treinador terá de cumprir a pena só em 2022.
E, como poder-se-ia imaginar, vieram as desculpas de Ferretti. Se sinceras ou não, impossível saber. Mas vieram.
“Reconheço que não foi apropriado. Terei mais cuidado com minhas piadas porque hoje em dia não são aceitáveis, pois as pessoas se ofendem. Não devo mais fazer comentários inadequados e peço desculpas a todas as pessoas que se ofenderam.”
Em tempo: Cabeça de torcedor é cabeça de um ser não pensante. Eu já fui, e não me cansava quando no estádio de ofender, junto com milhares ao meu redor, goleiro, jogador, treinador, massagista, roupeiro do time rival (árbitro, então, mais ainda), com os mais diversos e cabeludos palavrões, incluindo “bicha”. Eram os anos 1980, e eu era um adolescente que me tornava desmiolado ao virar torcedor. Parecia normal chamar de “bicha”, e hoje sei que o errado era os mais velhos deixarem parecer normal. Estamos nos anos 2020. Não parece mais normal usar “bicha”, e isso não tem relação com intolerância nem com liberdade de expressão. Isso se chama respeito.