Episódio em Brasil x Argentina reúne incompetência, artimanha e desleixo
É para deixar qualquer um abismado a sequência de acontecimentos que resultaram na suspensão de Brasil x Argentina, pelas Eliminatórias da Copa de 2022, em São Paulo.
Passavam-se pouco mais de cinco minutos da partida entre os arquirrivais, líder e vice-líder do qualificatório, quando membros da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) entraram no campo do estádio do Corinthians para interromper o jogo deste domingo (5).
O motivo: jogadores argentinos, que, de acordo com as autoridades brasileiras, haviam mentido na declaração preenchida ao chegar ao Brasil, descumpriram determinação previamente estabelecida.
É importante fazer a leitura da versão de cada lado, pois há diferenças nos relatos, e é prematuro afirmar quem está dizendo verdades, meias verdades ou mentiras.
A minha conclusão é que houve incompetência e inação do lado brasileiro, inverdade e artimanha do lado argentino e um desleixo geral, de governos e entidades futebolísticas, em relação aos riscos da pandemia de Covid.
Parece ter mesmo havido mentira argentina no que tange aos jogadores que omitiram em sua chegada ao Brasil –na sexta-feira (3), depois de terem passado pela Venezuela– não apenas que estiveram na Inglaterra, mas que moram lá.
Os atletas são o goleiro Martínez, o zagueiro Romero, o meia Lo Celso e o meia-atacante Buendía. O primeiro e o último jogam no Aston Villa, vivem em Birmingham. Os outros defendem o Tottenham, residem em Londres.
A linha do tempo mostra que essa suposta fraude só foi descoberta várias horas depois de os argentinos terem se instalado em um hotel em Guarulhos (Grande São Paulo).
Como foi desvendada? Deduz-se que alguém da Anvisa, ou que tenha contato com alguém da Anvisa, se tocou de que entrara no Brasil argentino que jogava na Inglaterra.

Neste momento, o governo brasileiro exige que estrangeiros que tenham estado no Reino Unido nos 14 dias anteriores à chegada ao país precisam cumprir quarentena (isolamento) de duas semanas aqui, para evitar a chance de disseminação da Covid, doença que matou mais de 4,5 milhões no mundo.
Sabia-se desde a convocação da seleção patagã, no dia 23 de agosto, que Martínez, Romero, Lo Celso e Buendía viriam, se nada de excepcional ocorresse, ao Brasil.
Era possível desde então que alguém ligado à Secretaria de Esporte do governo federal, já que as Eliminatórias são um evento de alta relevância e audiência, se mexesse e avisasse à AFA (Associação de Futebol Argentino), seja diretamente, seja via canais diplomáticos: vai dar confusão se vierem.
Ou ninguém do governo sabia dessa possibilidade, o que é um problema, ou, se sabia, não fez nada, igualmente um problema. Essa é a faceta da incompetência.
A inação ocorre depois da descoberta da presença dos quatro jogadores em solo brasileiro. A Anvisa agiu tão somente de forma polida. Acordou, diz, com os cartolas argentinos que eles não se deslocariam para fora do hotel e que seriam oportunamente deportados.
Nada contra ser polido. Mas, se alguma pessoa oferece risco sanitário, na falta da prevenção (impedir a entrada no país), deveria ser deportada imediatamente, e não sabe-se lá quando –suponho que só iriam embora junto com os outros jogadores, depois da partida.
Decidiu-se que ficariam? Então que tivessem vigilância todo o tempo da permanência. Todos os minutos. Ficariam em quartos isolados, as refeições seriam nesses aposentos, não poderiam sair dos mesmos em momento algum, só na hora de ir ao aeroporto.
Não aconteceu isso. E, se de fato houve um acordo –e é incrível como não se põe um trato tão importante no papel–, a Argentina não cumpriu, dizendo-se amparada pela Conmebol, a confederação sul-americana.
Aí é que entra o ardil. Imagino a fala de um dirigente: “Não tem ninguém vigiando os jogadores. Então deve ser só blá-blá-blá esse papo de quarentena. Vamos para o estádio, o jogo começa, aí já não dá para fazerem nada”.
Só que deu. E pegou mal para todos. Anvisa, Conmebol, seleção argentina. Sobrou até para a Polícia Federal, que teria chegado ao hotel só depois de o ônibus com os jogadores (incluindo a quadra que deveria estar confinada) ter saído para o estádio.
A solução esportiva depois da suspensão da partida, pois os argentinos se recusaram a atuar sem a presença de Martínez, Romero e Lo Celso, titulares contra o Brasil –Buendía não foi relacionado para o jogo–, será da Fifa, responsável pelas Eliminatórias.
A solução sanitária, percebe-se, está muito longe se ser equalizada. Leis, protocolos, acordos, nada disso serve se tudo é “para inglês ver”. Não há comprometimento, não há seriedade, não há bom senso.
A Inglaterra é país que o Brasil considera oferecer perigo sanitário? Sim. Martínez, Romero, Lo Celso e Buendía ofereciam esse risco? Sim. Poderiam estar infectados, mesmo assintomáticos e tendo testado negativo? Sim.
E os quatro estavam convivendo, em hotéis, ônibus, aviões, refeitórios, treinamentos, com todos os demais, havia pelo menos cinco dias. Os jogadores conversam entre eles, próximos, nem sempre usando máscara. Abraçam-se. Obviamente há chance, mesmo que pequena, de contágio.
Ou seja, nem os “ingleses” nem ninguém, absolutamente ninguém da delegação argentina, poderia entrar no Brasil.
Afirmar que, como passaram pela barreira de segurança e adentraram o país, não deveriam –todos, não só os quatro– circular por lugar nenhum, a fim de não terem contato com pessoas, é uma obviedade que governantes e dirigentes esportivos deveriam enxergar.
Isso se a questão de saúde fosse levada a sério, conforme a própria legislação determina.
Só que estamos no Brasil, país tanto do futebol como do descaso, da displicência, da negligência.
Por aqui, enxergar o óbvio mostra-se tão difícil como enxergar o sol em um dia nebuloso.