Novo Mundial de Clubes já nasce com dois obstáculos
A divulgação não foi maciça nos meios de comunicação e houve pouco debate a respeito até agora, então é possível que pouca gente saiba que o Mundial de Clubes no atual formato, aquele que o Flamengo disputará se vencer a Libertadores, está com os dias contados.
Três semanas atrás, a Fifa anunciou em Xangai que a China sediará a primeira edição do novo Mundial, que terá 24 times e será realizada a cada quatro anos, nos meses de junho e julho.
É uma mudança tremenda, já que o torneio atual organizado pela máxima entidade do futebol, disputado anualmente em dezembro, conta com sete equipes e tem duração de 11 dias.
O de 2019 será no Qatar, a partir do dia 11 do mês que vem. Já estão classificados Liverpool (Europa), Espérance, da Tunísia (África), Monterrey, do México (Américas do Norte e Central e Caribe), Hienghène, da Nova Caledônia (Oceania) e Al Sadd, do Qatar (país-sede).
Faltam serem definidos os representantes da América do Sul (Flamengo ou River Plate) e da Ásia (Al Hilal, da Arábia Saudita, ou Urawa Red Diamonds, do Japão).
Ao fazer o anúncio da sede e do número de participantes do novo Mundial, a Fifa informou que ainda serão definidos os critérios para a classificação dos clubes, assim como quais cidades chinesas abrigarão as partidas.
Com essa resolução de reformular a competição, a Fifa se vê envolta com dois obstáculos no caminho de seu recém-remodelado campeonato.
O primeiro é de ordem conceitual. Envolve direitos humanos, assunto reconhecidamente escanteado pela ditadura chinesa de Xi Jinping.
“O regime é uma catedral opressiva construída sobre brutalidades como o Grande Salto Adiante, a Revolução Cultural, a anexação do Tibete, o massacre da Praça da Paz Celestial. A contagem de mortos chega às dezenas de milhões”, trouxe a Folha em editorial no início de outubro, por conta do 70º aniversário do Estado chinês.
Assim que ficou ciente de que a China seria a sede do novo Mundial, a Anistia Internacional (famosa organização não governamental que atua pelos direitos humanos) se pronunciou, condenando a escolha.
“Pequim terá uma nova oportunidade de tentar lavar, pelo esporte, sua manchada reputação internacional. As autoridades chinesas verão a competição como uma chance de projetar uma imagem de abertura e tolerância, enquanto a realidade sombria do país é de uma censura penetrante”, declarou Allan Hogarth, representante da Anistia no Reino Unido, em texto publicado pelo Guardian.
“Todo clube envolvido na Copa do Mundo de Clubes sediada pela China, dos jogadores aos treinadores, deveria estar pronto para falar em nome dos direitos humanos na China.”
Questionado em entrevista a respeito do tema por um jornalista do New York Times, o presidente da Fifa, o suíço-italiano Gianni Infantino, após frisar que a Fifa tem, sim, uma política relacionada a direitos humanos, decidiu ser político e tergiversar.
“Precisamos refletir um pouco sobre nosso papel. Há problemas neste mundo, em todo lugar, em muitos países. Recentemente vimos o que aconteceu no Chile, no Líbano. Não é a missão da Fifa resolver os problemas do mundo. A missão da Fifa é organizar e desenvolver o futebol em todos os países do mundo.”
“Temos uma responsabilidade social, devido à magnitude do futebol. Mas não a exercemos atacando e criticando, e sim indo até as pessoas, conversando com as pessoas e entregando futebol às pessoas. Fazendo isso, distribuímos alegria e esperança.”
“Usamos o futebol como uma ferramenta de educação. Não para aprender a jogar futebol, mas para aprender a viver. Por meio do futebol nós podemos aprender a ser parte de um time, da sociedade, a respeitar o adversário. Aprender sobre igualdade de gênero, sobre saúde, sobre não discriminação.”
Enfim, optou por não fazer críticas à China, e não seria tolo de fazê-lo naquele momento – como não será pelo menos até o término do Mundial de 2021.
O segundo obstáculo é de ordem prática. Pois inclui ingredientes essenciais à realização da competição: os times. Ou ao menos uma parte deles.
A Associação Europeia de Clubes (ECA, na sigla em inglês), que representa as principais equipes do mais rico continente – e onde atuam os melhores jogadores do planeta – ameaçou boicotar o evento antes mesmo de saber que ele viria a existir.
Em comunicado enviado em março à Uefa (entidade que rege o futebol na Europa), assinado por 15 integrantes do conselho da ECA, os clubes posicionavam-se “firmemente contra a aprovação de um Mundial de Clubes reformado” e avisavam que “nenhum time da ECA participará de uma competição assim”.
A ECA conta com atualmente com 247 membros, e seu objetivo é preservar o pé de obra, que estaria em período de férias e sem correr risco de sofrer com um desgaste de mais um mês que pode resultar em lesões.
A ameaça foi feita. Será cumprida? Se sim, inviabilizará o Mundial inchado e reestruturado, pois é impensável imaginar sua ocorrência sem representantes europeus.
Infantino, se já não agiu antecipadamente nos bastidores, terá uma pendenga pela frente. E precisará muito mais que uma dose cavalar de retórica para convencer os interlocutores.
A solução pode estar em uma dose igualmente cavalar de incentivos financeiros para os participantes, além de a Fifa se responsabilizar, por meio de seguros, pela saúde física dos jogadores.
Em tempo: Com o Mundial de Clubes nos meses de junho e julho, ocorrendo sempre no ano que precede a Copa do Mundo de seleções, uma outra competição organizada pela Fifa teve emitido seu atestado de óbito. A Copa das Confederações, realizada no país-sede da Copa do Mundo e que servia de evento-teste para a mesma, deixará de ser realizada.