Denunciado, técnico brasileiro que fez história na Ucrânia deixa o cargo
No começo do mês passado, ao se apresentar para trabalhar no FC Lviv, Gilmar Tadeu da Silva entrou para a história.
Tornava-se o primeiro técnico negro a comandar um clube da primeira divisão da Ucrânia.
Com um contrato de dois anos, ele traçou um projeto pessoal: disputar uma competição europeia (Liga dos Campeões ou Liga Europa).
Para isso, precisava fazer com que uma equipe pequena, que estava na terceira divisão porém obteve vaga na elite ao fazer uma fusão com outra (o Veres Rivne), se tornasse competitiva a ponto de rivalizar até com os grandes do país, Dínamo de Kiev e Shakhtar Donetsk.
Após a chegada de Gilmar Tadeu, que tem dupla cidadania – é casado com uma ucraniana e tem residência no país europeu há quase dez anos –, o time se preparou para o campeonato nacional disputando quatro amistosos, e foi bem: duas vitórias e dois empates.
Na estreia no Ucraniano, no dia 22 de julho, um excelente resultado: vitória por 2 a 0, como visitante, diante do Arsenal de Kiev, treinado pelo ex-atacante italiano Fabrizio Ravanelli.
No jogo seguinte, em casa, o primeiro grande teste, o Dínamo de Kiev. Jogo duro. O Lviv perdeu, mas só levou o gol nos acréscimos do segundo tempo.
A essa partida seguiram-se uma derrota (1 a 0, fora, para o Vorskla Poltava, gol perto no fim da etapa final) e um empate (1 a 1, fora, diante do Olimpik Donetsk, mesmo com um jogador a menos, expulso, desde o fim do primeiro tempo).
Resultados não tão bons, mas dignos de reconhecimento e elogios da mídia local. Para um começo de trabalho, Gilmar Tadeu não fazia feio.

Porém, na semana passada, subitamente o técnico de 47 anos nascido em São Paulo teve de deixar a função.
A Federação Ucraniana de Futebol (FFU) avisou a direção do Lviv que Gilmar Tadeu não tinha concluído o curso de treinador Uefa Pro, o nível mais avançado de certificação, necessário para trabalhar nas divisões mais altas na Europa.
“Me denunciaram. Meu caso é o mais falado na Ucrânia, em todos os canais [de TV]”, disse ele em entrevista por telefone a O Mundo É uma Bola.
“O que era para ser ruim virou uma notícia boa. A repercussão foi muito grande”, acrescentou, em referência a abordagens e reportagens da imprensa que considera positivas. “Eu me tornei uma pessoa famosa aqui.”
Fluente em ucraniano (e também em inglês, espanhol e russo, além do português), ele foi convidado por uma emissora local para comentar as duas partidas do Dínamo de Kiev contra o holandês Ajax, pela fase classificatória da Liga dos Campeões da Europa. O duelo de volta ocorre nesta terça (28).
É verdade que Gilmar Tadeu não tem a habilitação exigida. Tanto que, tão logo a FFU notificou o clube, afastou-se do cargo.
“Não fui mandado embora. Estou me ausentando para resolver um problema meu, que não é do clube”, afirmou ele, que estudou até obter o diploma Uefa A. Ou seja, não poderia, nesse estágio, ser o treinador de nenhum clube na primeira divisão ucraniana.
É verdade também que a federação decidiu interferir apenas com o campeonato em andamento. Antes, ou não havia constatado a falha ou decidira fazer vista grossa.
Alvo de denúncia, Gilmar Tadeu também faz uma. Diz haver técnicos no comando de clubes da primeira divisão na Ucrânia que não possuem o certificado Uefa Pro. “Tem ucraniano trabalhando com Uefa A e ninguém fala nada.” Não mencionou qual ou quais.
Sobre sua situação irregular, ele disse que o Lviv estava se preparando para fazer uma recomendação à FFU para que ele pudesse participar da etapa final do curso de técnico. “Não houve tempo para isso porque denunciaram.”

O treinador afirmou, a respeito da denúncia, não poder se aprofundar ou citar nomes, pois isso poderia ser prejudicial na resolução da sua situação. Ele negocia para entrar em uma turma na capital da Ucrânia, Kiev, que concede o Uefa Pro.
O custo desse último estágio de formação é de cerca de US$ 4.000 (R$ 16,4 mil).
De acordo com o Gilmar Tadeu, se ele começar a frequentar essas aulas, coloca-se automaticamente em condição de dirigir um time da primeira divisão.
Questionada sobre o autor da denúncia, a FFU não se manifestou. Também não respondeu se existem técnicos na ativa na divisão de elite sem a certificação necessária. Nem se Gilmar Tadeu será aceito em curso no país, já em andamento, para obter esse documento.
Informações que O Mundo É uma Bola obteve e não conseguiu confirmar dão conta de que há no Lviv um racha entre dirigentes, tendo parte deles mostrado insatisfação com decisões de Gilmar Tadeu na escalação do time.
O clube contratou na metade deste ano sete jogadores brasileiros – cinco deles com até 23 anos –, com a expectativa de colocá-los na vitrine, valorizá-los e negociá-los com outros mercados europeus.
Nas quatro partidas do Campeonato Ucraniano em que Gilmar Tadeu comandou o Lviv, só um (o atacante Augusto Bruno) começou como titular em todas, e outros dois iniciaram apenas um jogo. Os demais ficaram na reserva ou não foram relacionados.
Sob a direção do ucraniano Yuri Bakalov, substituto de Gilmar Tadeu, alguns desses brasileiros recém-contratados começaram a ter um pouco mais de espaço na equipe.
Bakalov, entretanto, ainda não venceu. Em dois jogos com ele, o Lviv soma uma derrota e um empate.

Em tempo 1: Gilmar Tadeu diz que a questão do racismo na Ucrânia não o afeta hoje (“é o mesmo que existe no Brasil, na Alemanha, em todo lugar”), mas que ao chegar ao país, no fim da década passada, foi vítima de gestos e palavras devido à cor da pele, especialmente de pessoas mais jovens. Isso não o impediu de atuar, como treinador da categoria de base e depois assistente técnico do time adulto, no Metalurh, da cidade de Zaporizhya, de 2010 a 2014, contribuindo para o acesso da modesta equipe à primeira divisão. “Hoje sou respeitado, conquistei esse respeito através do futebol.”
Em tempo 2: Em referência à ausência de treinadores brasileiros em atividade nos clubes europeus, Gilmar Tadeu diz que as únicas barreiras são a certificação (é necessário cursar quatro anos para a obtenção do diploma Uefa Pro) e o idioma. “É caro, mas, se acreditar e fizer esse alto investimento, é possível, pois os treinadores brasileiros, apesar de desunidos, são bons.” Além da passagem pelo Metalurh Zaporizhya, ele comandou os paulistas União de Mogi e Osvaldo Cruz, o saudita Al-Mujazzal e o macaense Chao Pak Kei, antes de assumir o FC Lviv.
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Em tempo 3: Como jogador, Gilmar Tadeu foi, em suas palavras, “desconhecido e mediano”. Atacante, Gil Paulista, como ele era chamado, nunca defendeu uma equipe grande, apenas médias e pequenas.