‘Entre no ônibus’; do preconceito à soberania, Marta conta como tudo começou
No futebol feminino, o Brasil jamais conquistou uma Copa do Mundo, na disputa que existe desde 1991. Os EUA foram campeões três vezes, a Alemanha, duas, a Noruega, uma, e o Japão, uma.
Também nunca conquistou o ouro na Olimpíada. Desde 1996, a modalidade faz parte do programa olímpico. Os EUA ganharam quatro vezes, e a Alemanha e a Noruega, uma vez cada uma.
Mesmo sem ter chegado ao topo, o Brasil pode se orgulhar de ser penta… no prêmio dado anualmente, desde 2001, à melhor jogadora do planeta.
Ninguém teve mais vezes essa honra do que Marta, vitoriosa de 2006 a 2010.
Apelidada de Rainha, a alagoana, hoje com 31 anos, está entre as melhores de todos os tempos.
Quem a viu jogar no auge deve se lembrar de que, do alto de seu 1,63 m, ao pegar a bola, ela era um demônio, no bom sentido. Ágil, habilidosa, inteligente e determinada são algumas das palavras que a adjetivam.
Avançava entre jogadoras mais fortes, que nem a parar com falta conseguiam, até finalizar com precisão (é a maior artilheira da seleção brasileira) ou dar um passe para uma companheira concluir para o gol adversário.
Faço essa introdução depois de ler um ótimo texto dela, em primeira pessoa, publicado no dia 24 de agosto no site The Player’s Tribune (A Tribuna dos Jogadores), plataforma que expõe conteúdo escrito por atletas profissionais.
Alguns desses esportistas contam ali momentos marcantes de suas vidas, e assim fez Marta, que endereçou uma carta a ela mesma – não para a Marta de hoje, já trintona, mas para a Marta que tinha 14 anos.
“Entre no ônibus.” Assim começa o texto.
Pois foi aos 14 anos que Marta tomou a decisão que mudaria sua vida.
Partiu para uma viagem de três dias, da minúscula Dois Riachos, cidade alagoana de pouco mais de 10 mil habitantes, para a metrópole Rio de Janeiro, onde superaria uma espera angustiante que parecia interminável até ter a chance de exibir suas qualidades, que a levariam para voos muito altos.
Rica nos detalhes dos acontecimentos, a narrativa vale muito por escancarar o grau de preconceito a que Marta afirma ter sido exposta quando pequena.
Ela era apenas “uma garota que amava o futebol”, queria nada mais do que simplesmente jogar futebol, mas nenhuma outra menina lhe fazia companhia no futebol.
Marta era vista como uma anormal.
Ela, contudo, insistia, lutava dia a dia por uma vaguinha nas peladas do seu bairro, nos times formados por meninos.
E, por ser excelente, muito melhor do que quase todos os meninos de sua faixa etária, jogava.
Não sem causar constante incômodo ao redor. Jogava sob “olhares estranhos” e recebendo “comentários maldosos”.
“Este não é um lugar para meninas”, afirmou o treinador de um time rival do de Dois Riachos, antes de um campeonato no qual ela defenderia a seleção de Dois Riachos. “Tirem a garota.”
Tiraram, e Marta chorou.
“Por que é que Deus me deu esse talento, se ninguém quer que eu jogue?”
A pressão para que parasse era imensa, mas Marta não parou.
Chutou com força para bem longe as hostilidades, marcou gols e mais gols na intolerância, driblou fazendo fila, um a um, os garotos que diziam “você não pode”.
E conquistou seu espaço no Vasco da Gama. Depois, com o fim do futebol feminino no clube carioca, no Santa Cruz, de Minas Gerais. Depois, na seleção brasileira. E na Suécia. E no Santos. E no futebol dos EUA, onde joga atualmente pelo Orlando Pride.
Marta não tem um título mundial ou olímpico pelo Brasil, mas é uma brasileira campeã. Acima de tudo, uma campeã da perseverança. Que lhe rendeu bens não mensuráveis: aceitação, autoestima e respeito.
Ela é um exemplo para as meninas que sonham jogar bola sem serem condenadas impiedosamente por machistas que insistem em perdurar com o falido discurso “futebol é pra homem!”.
Em tempo: Pelé, Ronaldo Fenômeno e Ronaldinho Gaúcho estão entre os brasileiros que já escreveram como colaboradores para The Player’s Tribune. Todos os textos são saborosíssimos. Recomendo a leitura.