Ídolo do Liverpool se aposenta e diz que convive com assombração

Luís Curro

Sempre que um craque anuncia que está pendurando as chuteiras, o mundo da bola se entristece, sente-se meio órfão.

Todavia, a aposentadoria faz parte da vida, e geralmente chega mais cedo para os esportistas do que para quem exerce outra atividade profissional.

Nesta quinta (24), foi a vez de o meia Steven Gerrard, ídolo do Liverpool (capitaneou o time de 2003 a 2015) e um dos expoentes da seleção inglesa (esteve nas Copas do Mundo de 2006, 2010 e 2014), fazer, aos 36 anos, o anúncio.

In this Wednesday May 25, 2005 file photo, Liverpool captain Steven Gerrard holds the trophy after Liverpool's victory in the Champions League Final between AC Milan and Liverpool at the Ataturk Olympic Stadium in Istanbul, Turkey. Gerrard, the former Liverpool and England captain, announced his retirement from professional soccer on Thursday, Nov. 24, 2016 and said he is considering a "number of options" about his next career move. (AP Photo/Dusan Vranic,
Capitão do Liverpool, Gerrard ergue o troféu da Liga dos Campeões da Europa, conquistado 11 anos atrás diante do Milan, em Istambul (Dusan Vranic – 25.mai.2005/Associated Press)

E, em uma entrevista na BT Sport a Gary Lineker, ex-artilheiro do English Team e hoje comentarista esportivo, confidenciou que terá de conviver por não sabe quanto tempo com um fantasma – que já o atormenta há mais de dois anos.

Pelo Liverpool, clube que defendeu dos 7 aos 35 anos, Gerrard ganhou Liga dos Campeões da Europa, Supercopa da Europa, Copa da Uefa, Copa da Inglaterra, Supercopa da Inglaterra, Copa da Liga Inglesa… porém jamais ganhou um Campeonato Inglês.

Esteve muito perto, mas um erro dele contribuiu para que a equipe não tenha quebrado em 2014 o jejum que durava (e ainda dura) desde 1990.

Líder a três rodadas do fim, o Liverpool recebeu o Chelsea de José Mourinho no estádio Anfield, no fim de abril. A equipe dirigida por Brendan Rodgers vinha de nove vitórias seguidas e era favorita.

Nos acréscimos do primeiro tempo, a bola foi passada para Gerrard, próximo ao círculo central, no campo defensivo do Liverpool. Era um passe curto e simples.

Só que, ao tentar dominá-la, ele escorregou, e Demba Ba aproveitou-se. Como o Liverpool estava indo para o ataque, calhou de Gerrard ser o último homem. Não havia cobertura.

O senegalês avançou em velocidade, perseguido por um desesperado Gerrard, e, da entrada da área, chutou e venceu o goleiro Mignolet.

Eu estava vendo esse jogo, ao vivo, pela TV, e demorei a acreditar que aquilo tinha acontecido. Qualquer um dos jogadores Reds podia falhar feio, isso era imaginável. Não Gerrard.

Mas aconteceu, e ele, impassível, buscou a bola na rede para levá-la de volta ao meio-campo. Externamente, não mostrava emoção; internamente, se remoía.

“Tive momentos ruins (na carreira), alguns brutais, que me deixaram arrasado. Obviamente, o jogo do Chelsea (foi o pior). Será um (momento) que me assombrará por muito tempo”, disse Gerrard na conversa com Lineker.

Chelsea's Portuguese manager Jose Mourinho (L) keeps the ball away from Liverpool's English midfielder Steven Gerrard (C) during the English Premier League football match between Liverpool and Chelsea at Anfield Stadium in Liverpool, northwest England, on April 27, 2014. AFP PHOTO / ANDREW YATES
Gerrard (8) tenta pegar a bola de José Moutinho, então treinador do Chelsea, em partida decisiva em que escorregou e permitiu ao time rival fazer um gol (Andrew Yates – 27.abr.2014/AFP)

O Liverpool não se recuperou naquela partida. Perdeu de 2 a 0 – o brasileiro Willian marcou no segundo tempo. Tropeçou de novo no jogo seguinte (3 a 3 com o Crystal Palace), e a vitória por 2 a 1 sobre o Newcastle na rodada final de nada serviu. O Manchester City faturou a taça.

Gerrard sente e sentirá a falta do título do campeonato nacional. Pode não ser a competição mais importante (é a Champions), mas, pela dedicação que ela exige – são nove meses jogando semana após semana, em pontos corridos, 38 jogos ao todo –, sua conquista tem um gostinho especial.

Que Gerrard não teve.

O que Gerrard teve, e de sobra, foi um futebol maravilhoso de se assistir.

Tive a felicidade de vê-lo em um Manchester United 3 x 2 Liverpool, no Old Trafford, em um domingo chuvoso de setembro de 2010.

Com os Reds atrás (2 a 0), Gerrard marcou de pênalti e de falta, em um intervalo de seis minutos, empatando o duelo. Comemorou com grande entusiasmo, perto da torcida dos Reds, que se situava próxima de onde eu estava – o búlgaro Berbatov, que já tinha feito os dois primeiros do United, desempatou perto no fim.

Nesse jogo, Gerrard exibiu o de sempre, e é bom que ele mesmo diga, conforme relato a Lineker, o jogador que foi. “Eu pude fazer um pouco de tudo. Podia cabecear, podia marcar, podia correr, podia fazer passes curtos e longos, podia fazer gols. O meu forte era isso: ter o porte físico e a resistência para fazer um pouco de tudo.”

Posso dizer que a descrição é modesta.

Gerrard, de 1,83 m e 83 kg, foi um craque, cuja maior qualidade era a visão espetacular (suas viradas de jogo, verdadeiros lançamentos, eram constantes e precisas), e é difícil citar um meia que finalizasse de fora da área melhor que ele (talvez outro inglês, seu contemporâneo, Frank Lampard, ainda na ativa, equivalha-se).

Preferia o passe ao drible e batia faltas, pênaltis, escanteios. Quando não batia faltas e escanteios, ia para a área cabecear, o que fazia bem.

Marcava com qualidade e lealdade.

E era um líder.

Jogador completo. Deixa saudade.

Em tempo 1: Em 2015 e em 2016, Gerrard atuou pelo LA Galaxy, da Major League Soccer, o campeonato norte-americano de futebol. Em 41 jogos, fez cinco gols. Não ganhou títulos.

Em tempo 2: Na entrevista à BT Sport, Gerrard revelou qual o melhor jogador com quem atuou. “Luis Suárez, disparado.” Para o inglês, o uruguaio, hoje no Barcelona, é “fenomenal”.